Correndo o risco de me repetir e de com este discurso estar a chover no molhado: há uma verba de 1.200€ a ser paga por quem se inscreve na New Way que, com a cumplicidade de um buraco na lei, nunca é devolvida a quem desiste. Nem sequer há lugar ao direito de restituição. A razão é simples: tal verba é cobrada numa espécie de contrato de trabalho. Um contrato que não afigura nenhuma compra ou prestação de serviços, que por esse motivo não "sofre" da obrigatoriedade de devolução de pagamento durante o prazo legal de 14 dias, e que "apenas" vincula o associado a ser um intermediário na angariação de novos membros para o clube .
Dito por outras palavras: o "trabalhador" está a pagar para "trabalhar". À cabeça. No momento em que assina o contrato. Nesse momento, no momento que finalizou de escrevinhar o seu nome no papel, ficou automaticamente a dever 1.200 € (+ IVA) à New Way. Sem hipótese de alguma vez ser ressarcido.
Isto quase que dá vontade de rir. Só que não dá.
Que outra razão haveria? Estou farto de puxar pela cabeça e não me surge nada. Branco absoluto.
Mesmo que a pessoa pretenda desistir no dia seguinte ao da inscrição, AZAR. Ardeu o dinheiro.
Este dinheiro servirá essencialmente a dois propósitos na "estratégia empresarial" da New Way:
1 - Pagar comissões ao upline (se o João enfiou o Joaquim na "rede" e o Joaquim enfiou a Marta, dos 1.200€ pagos pela Marta, 200€ serão usados para recompensar o Joaquim pelo seu trabalho de "ilusionista", 100€ vão para João e o resto vai para o bolso da empresa - não sei ao certo os valores e as regras de proporção, mas o a lógica é esta)
2 - Inibir as pessoas a desistirem da rede. Quem pagou uma quantia destas sabendo que não lhe será restituída terá tendência para se servir da oferta da New Way, numa lógica de "já que paguei, mais vale desfrutar de tudo aquilo que puder."
É pois curioso que, no seguimento da mesma carta, no ponto 6, o advogado da New Way invoque o disposto nos artigos 5.º e 6.º do Decreto-lei n.º 446/85 de 25 de Outubro, sobre "cláusulas contratuais gerais", e passo a citar:
«5. Apresentam-se as cláusulas contratuais gerais como algo de necessário, que resulta das características e amplitude das sociedades modernas. Em última análise, as padronizações negociais favorecem o dinamismo do tráfico jurídico, conduzindo a uma racionalização ou normalização e a uma eficácia benéficas aos próprios consumidores. Mas não deve esquecer-se que o predisponente pode derivar do sistema certas vantagens que signifiquem restrições, despesas ou encargos menos razoáveis ou iníquos para os particulares.
Ora, nesse quadro, as garantias clássicas da liberdade contratual mostram-se actuantes apenas em casos extremos: o postulado da igualdade formal dos contratantes não raro dificulta, ou até impede, uma verdadeira ponderação judicial do conteúdo do contrato, em ordem a restabelecer, sendo caso disso, a sua justiça e a sua idoneidade. A prática revela que a transposição da igualdade formal para a material unicamente se realiza quando se forneçam ao julgador referências exactas, que ele possa concretizar.
6. O Código Civil vigente consagra em múltiplas disposições o princípio da boa-fé. Deu-se um passo decisivo no sentido de estimular ou habilitar os tribunais a intervenções relativas ao conteúdo dos contratos, com vista à salvaguarda dos interesses da parte negocialmente mais fraca. Através da boa-fé, o intérprete dispõe de legitimidade para a efectivação de coordenadas fundamentais do direito. O apelo ao conceito de ordem pública é um outro alicerce.
Sabe-se, contudo, que o problema das cláusulas contratuais gerais oferece aspectos peculiares. De tal maneira que sem normas expressas dificilmente se consegue uma sua fiscalização judicial eficaz. Logo, a criação de instrumentos legislativos apropriados à matéria reconduz-se à observância dos imperativos constitucionais de combate aos abusos do poder económico e de defesa do consumidor. Acresce a recomendação que, vai para nove anos, o Conselho da Europa fez, nesse sentido, aos Estados Membros. »
Dois artigos em que se fala, a determinada altura, em "idoneidade" e "boa fé". Expressões que manifestamente, e como prova a existência do valor acima citado no contrato acima citado, são usadas pela New Way com a maior desfaçatez imaginável. Estamos a falar de uma empresa que resolve incluir um pagamento de 1200€ (+IVA) num contrato de trabalho (!?) para se imiscuir à obrigatoriedade de ter de devolver esse dinheiro caso o outro outorgante se arrependa nos dias imediatamente seguintes à assinatura do mesmo.
É isso, não é?
Pois!
Esta é uma das informações que deveria ser prestada a toda a gente que fosse assistir às reuniões da New Way, antes de entrarem no recinto.
Pergunto eu: depois desta prova inequívoca, alguém acredita que a empresa promove tais valores ("boa fé", "idoneidade") com sinceridade? Eu, não.
Não é apenas com palavras que se firma um carácter recto e honesto. É com acções. Desafio a New Way a provar, à frente de toda a gente, que é uma empresa idónea e com boa fé. Sabem muito bem o que têm de fazer para o conseguirem. Podem começar por eliminar esta cláusula do contrato. E depois podem simplesmente perguntar aos vossos associados se entre eles há os que desejam desistir e propor a restituição deste valor, incondicionalmente, a quem o pretenda fazer. É evidente que eu sei que isto nunca vai acontecer, mas permitam-me que fantasie sobre um aspecto que me parece absolutamente essencial e incontornável num bom relacionamento entre uma empresa e o seu público: a transparência e a boa conduta que esta tem de demonstrar perante os seus "associados", sejam eles simples interessados em conhecer a oferta, consumidores, ou "intermediários" no seu negócio.
Resta-me uma dúvida no meio disto tudo, mais derivada da simples curiosidade do que de outra coisa qualquer: em termos contabilísticos, como serão estes 1.200€ (+ IVA) registados nos livros da empresa?
2 - Sobre os conceitos de "Marketing de Rede" e "Esquema em Pirâmide" (novamente)
Para quem não se deu ao trabalho de pensar bem no caso, estes dois conceitos não são mutuamente exclusivos até porque um deles se refere a um modelo comercial, e outro a uma disposição legal, que varia de país para país e de estado para estado (e se alguém duvidar deste raciocínio, queira por favor justificar a sua posição de forma objectiva). Pelo contrário, até são "modelos estruturais" que, pelas suas características, se acham bastante próximos, podendo coabitar em alegre harmonia. É comum os promotores destes modelos servirem-se de um para camuflar o outro.
Não serve de nada utilizar o argumento (falacioso e erróneo) de que determinado negócio não é um "esquema em pirâmide" porque é "Marketing de Rede" (ou Multinível). Pode ser uma coisa e a outra ao mesmo tempo.
Por acaso, nem sequer é neste intervalo de "coabitação" que coloco a actividade da New Way. Marketing de Rede, definitivamente, não é, porque esse conceito assenta num outro, o da "venda directa", uma actividade que não é bem aquilo que os "intermediários" da New Way promovem.
Apesar de haver um lado perfeitamente legítimo na actividade da New Way, o da organização de eventos e o da venda de kits com vantagens, tal como descrito no ponto 2 da carta do advogado, tal como anunciado de forma explícita no site da empresa, e que encontra correspondência, grosso modo, no contrato de membro da New Way, há um outro lado, o da promoção do "esquema em pirâmide", que encontra suporte no contrato de "intermediação" e que está oculto de tudo o que é informação institucional da empresa (curioso, não é? em lado nenhum do site podemos encontrar informações sobre os "métodos" de angariação de novos sócios e sobre as recompensas monetárias associadas)
Voltando ao tema, chega a ser hilariante ler a argumentação utilizada pela New Way - e pelo seu advogado na carta em análise - para justificar que a actividade não é um "esquema em pirâmide". Para além de fazer tábua rasa à legislação portuguesa e comunitária sobre o assunto, encerra uma contradição do tamanho do planeta Marte e comete a proeza de utilizar um artigo da wikipedia para explicar um conceito (!?). Pior seria difícil.
Mas vamos por partes.
A lei portuguesa tem duas disposições que focam especificamente as "vendas em pirâmide":
Decreto-Lei n.º 143/2001. de 26 de Abril
«Artigo 27.º
Vendas «em cadeia», «em pirâmide» ou de «bola de neve»
2 - Para efeitos do disposto no número anterior, considera-se venda «em cadeia», «em pirâmide» ou de «bola de neve» o procedimento que consiste em oferecer ao consumidor determinados bens ou serviços fazendo depender o valor de uma prometida redução do seu preço ou a sua gratuitidade do número de clientes ou do volume de vendas que, por sua vez, aquele consiga obter, directa ou indirectamente, para o fornecedor, vendedor, organizador ou terceiro.»
e
Decreto-Lei 57/2008 de 26 de Março.
«Artigo 8.º
São consideradas enganosas, em qualquer circunstância, as seguintes práticas comerciais:
(...)
r) Criar, explorar ou promover um sistema de promoção em pirâmide em que o consumidor dá a sua própria contribuição em troca da possibilidade de receber uma contrapartida que decorra essencialmente da entrada de outros consumidores no sistema.»
Não vou discorrer novamente sobre a aplicabilidade destes decretos ao negócio da New Way, até porque tal acção compete à ASAE, mas não vou perder a oportunidade de prestar uma ajuda ao advogado da New Way a ler e a compreender um texto que não é assim tão complicado.
Quando o senhora afirma, na supra-citada carta, ponto 11, que:
«(...) a actividade da Empresa [New Way] insere-se no conceito de Marketing de rede, em que se traduz no movimento de dinheiro que decorre da entrada de novas pessoas para a empresa associadas à venda de um produto, à prestação ou divulgação de um serviço. Esclarece-se que a actividade da Empresa não consiste no sistema de recrutamento de pessoas que se traduz tão só e apenas num movimento de dinheiro, com a entrada de novas pessoas para o negócio, mas onde não existe qualquer produto ou serviço a ser comercializado: isto sim, é o que se chama negócio pirâmide.»
... não deve ter lido ou, se leu, não soube perceber, a parte do artigo 27 do Decreto-Lei 143/2001, onde, sobre "vendas em pirâmide", aparece escrito:
«(...) o procedimento que consiste em oferecer ao consumidor determinados bens ou serviços fazendo depender o valor de uma prometida redução do seu preço ou a sua gratuitidade do número de clientes ou do volume de vendas que, por sua vez, aquele consiga obter(...)»
Enfim, bastaria isto para mostrar que houve aqui um "pequeno" mal entendido na argumentação utilizada, mas para levar o assunto até ao fim, e mesmo considerando que a informação seguinte é apenas complementar e que não tem efeitos legais, transcrevo excertos de um artigo que escrevi há uns tempos a propósito da Agel (essa outra empresa de "Marketing de Rede" que cumpria escrupulosamente a lei portuguesa...), e onde podem obter uma opinião de alguém manifestamente mais credenciado para falar do assunto do que eu:
«Creio que já toda a gente leu algo, ou faz uma certa ideia, acerca do argumento (errado) de que um "Esquema em Pirâmide" não movimenta produtos.
Quanto à movimentação de produtos numa pirâmide (e não só), leiam por favor o seguinte parágrafo, retirado do estudo que a Comissão Europeia realizou em 1999 sobre as Vendas Directas, Marketing Multinível e Esquemas em Pirâmide ( fonte , trecho retirado das págs 123-124, gráfico na pág. 260):
Modern Pyramid Systems have been planned in order to evade the application of anti-pyramid statutes. The structure reminds of a Multi Level Marketing system. (...) They sell products to final consumers, which are usually of a good quality. (...)
In such a Pyramid Scheme sales into the system play a key role. They are promoted by the company through granting financial advantages for sales to participants of the network. In practice there are two possibilities: (...) (2) The recruit buys the products of the company. The sponsor obtains a commission on the purchase volume of his downline. The participants can either buy the products for his own consumption or for retail. There is no effective control whether the goods purchased are resold to final consumers or not.
tradução livre:
Sistemas de Pirâmide modernos são planeados de forma a escaparem à aplicação de estatutos anti-piramidais. A sua estrutura assemelha-se à de um Sistema de Marketing Multinível. (...) Tais sistemas (piramidais) vendem produtos ao consumidor final que são geralmente de boa qualidade. (...)
Em tais Sistemas de Pirâmide as vendas para dentro do sistema desempenham um papel fundamental. São promovidas pela companhia através da oferta de vantagens financeiras para os participantes na rede. Na prática há duas possibilidades: (...) (2) O recruta compra os produtos à companhia. O recrutador/promotor obtém comissões no volume de compras do seu downline. Os participantes podem comprar os produtos para o seu próprio consumo ou para venderem a retalho. Não há um controlo efectivo sobre a venda de tais produtos a um consumidor final.»